terça-feira, 23 de outubro de 2007

Maratona do Porto: Uma longa história feliz!

O despertador tocou às seis e meia da manhã, ainda o dia não tinha nascido. Levantei-me, tomei calmamente o pequeno-almoço: chá de cidreira, cereais e aletria. Vesti o equipamento de corrida, já preparado da véspera, e como ainda estava frio optei por levar um fato de treino um pouco mais quente. Em breve, estava já na padaria da esquina a tomar um café enquanto esperava pelos meus companheiros de aventura, que entretanto chegaram, para rumarmos ao Porto e darmos início à tão ansiada corrida para a qual nos tínhamos preparado com afinco ao longo de semanas a fio.

A viagem foi curta, dando apenas para trocar algumas impressões acerca da noite de sono, bem ou mal dormida, sobre os diferentes objectivos para cada um de nós, assim como o ritmo a adoptar durante a corrida, mas a boa disposição e a determinação em fazer uma boa prova era comum a todos.

Ainda era cedo quando chegamos ao Parque da Cidade, mas já eram muitos os atletas que por ali vagueavam e começa-se a sentir o ambiente da maratona. Os insufláveis, as tendas, as bancadas, o podium. Vou caminhamdo junto às grades da recta da meta e por breves instantes fixo o olhar no pórtico que ostenta o relógio electónico que está limpinho a 'zeros'. Não pude deixar de pensar que tempo iria ele marcar umas horas mais tarde, quando eu por ali passasse, seguramente exausto, faltando saber se feliz ou frustrado.

Coloquei-me numa fila composta por atletas e caminhantes de t-shirt vermelha e apanhei um dos muitos autocarros que nos levava até perto do Palácio de Cristal, onde juntamente com partida da maratona, um pouco mais atrás partia também uma mini-corrida de 6 km. Cumprimentei este e aquele, tirei uma foto e entre os ligeiros 'trotes' de aquecimento vamos desejando boa sorte uns aos outros.

O ciclista Cândido Barbosa dá o tiro da partida e lanço-me à estrada para dar início à 6ª. maratona da minha carreira.

Primeiro quilómetro
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Descontraído e calmo subo a Rua Júlio Dinis, contorno a Rotunda da Boavista, passo a placa do primeiro quilómetro e o meu cronómetro assinala 4m25s. Na Casa da Música tomo a Avenida da Boavista que nos brindava com uma ligeira descida para compensar a perda inicial e estabilizar o ritmo nos 4m8s/km pretendido.

Quarto quilómetro

Junto ao Estádio do Bessa, a estátua da pantera negra, símbolo do Boavista F.C., numa pose majestosa parecia observar os 'leões do asfalto' que seguiam dispersos ao longo da rua.

Sexto quilómetro

Ultrapassado o primeiro posto de abastecimento onde bebi uns golos de água e depois de dobrado o quinto quilómetro, em 20m47s, fiz o primeiro balanço da corrida. O ritmo estava bom, apenas não ia em grupo, mas como quer um pouco à minha frente como atrás de mim havia atletas, era muito provável e desejável que a qualquer momento se formasse um grupo, sempre muito importante para coroar com êxito uma maratona.

Oitavo quilómetro

Corríamos agora junto à Foz e ali mesmo onde o rio se encontra com o mar, estava já rodeado de cinco atletas, dois espanhóis e três portugueses, formando assim um sexteto ibérico, uma vez que após uma breve troca de palavras deu para perceber que perseguíamos tempos finais idênticos.

Décimo segundo quilómetro

Com a Ponte da Arrábida à vista, um ligeiro vento de frente começou a perturbar a nossa cadência, mas logo retomamos o ritmo desejado assim que passamos no local da partida da meia-maratona, prova paralela à nossa que iria partir dali a uns minutos. As centenas de atletas que aguardavam o início da sua corrida aplaudiram ruidosamente os maratonistas aquando da passagem.

Décimo sétimo quilómetro
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Em silêncio, mas sempre com espírito de entreajuda, o grupo mantinha-se compacto 'engolindo' os quilómetros com o passo certo. Atravessámos a Ponte D. Luís para Gaia e como que aproveitando a corrente do rio Douro deslizamos pela estrada fora até à Afurada.

Vigésimo primeiro quilómetro
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Imediatamente a seguir ao local de retorno. Ao passar por cima do tapete e ao som do apito dos chips, que indicava a passagem da meia-maratona, o meu cronómetro marcava 1h27m30s. Novo balanço - estava dentro do previsto, mas convinha ter presente que a corrida só ia a meio e as dificuldades só mais tarde costumam surgir.

Vigésimo segundo quilómetro

"Miguel, si quieres va-te! Io me quedo con estos compañeros." - disse um dos espanhóis para o outro. E o Miguel saltou do grupo e lá foi. Mas não foi sozinho! Outro elemento do grupo, um português, como que recordar a velha rivalidade ibérica, foi no seu encalço. O sexteto transformou-se em quarteto. Nós mantivemos o ritmo, os dois 'fugitivos' é que engataram uma mudança mais veloz.

Vigésimo quinto quilómetro

Os quatro 'mosqueteiros' continuavam a sua saga. 'Cavalgávamos' a 4m12s/km, alcançámos um grupo que ia em perda, onde reconheci a Aureliana, a vencedora da maratona da ano passado e o ousado português que 'teimou' em não deixar escapar sozinho o espanhol. O Miguel, como entretanto me disse o amigo do quarteto, era corredor de provas de 100 km e esse já ninguém o via!

Vigésimo sétimo quilómetro
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Voltamos a atravessar a Ponte D. Luís. Subitamente, deparamos com uma multidão que participava na já referida prova paralela: a meia-maratona, mas como eram os atletas mais atrasados, corriam a um ritmo muito inferior ao nosso, obrigando-nos a serpentear entre eles. Inevitavelmente, o nosso ritmo caiu! Perdi o controlo dos Kms porque não conseguia ver as placas que os assinalavam. Quase perdia o abastecimento dos trinta quilómetros. No meio de tanta confusão acabei por perder dois companheiros do quarteto. Fiquei apenas com um compatriota que aqui e ali insultava os 'arrastões' que nos surgiam no caminho. Confesso que por pouco perdia também de forma irreparável o controlo da corrida, pelo que aquilo que a organização provavelmente julgava ser uma ajuda para os maratonistas, revelou-se uma enorme dificuldade!

Trigésimo primeiro quilómetro

Depois de quatro quilómetros desgastantes e já com a estrada livre, lado a lado eu e o meu companheiro tentamos melhorar o ritmo e minimizar as quebras de tempo. "Amigo - ainda dá par baixar as 3 horas?" - perguntou-me ele. "Sim!!!" - respondi convictamente.

Trigésimo quinto quilómetro

O ritmo não era o dos quilómetros inicias mas tinha melhorado em relação aos do agoniante período de obstáculos. Uns golos na milagrosa bebida isotónica, renovam a energia e dão novo alento. Mas o meu companheiro queixa-se de cãibras, lamentou que já há dois anos tinha parado por ali com o mesmo sintoma! Um ciclista que seguia em cima do passeio foi a solução encontrada pelo meu companheiro: "Pá, vai-me arranjar gelo ali a um café!!!". E não é que volvidos umas dezenas de metros, o ciclista ofereceu um saco com gelo ao meu companheiro de aventura, que sem parar foi esfregando as coxas e exclamou que já estava bem!!!

Trigésimo oitavo quilómetro
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"Amigo!!! Ainda dá???" - pergunta novamente o meu companheiro. "Sim!" - Respondi, mas já com menos convicção que minutos antes. Por uns momentos pensei nas cãibras que o meu amigo falou, parecia que também estava a sentir algo idêntico, mas era apenas resultado da sugestão, do cansaço e do sol que também já se fazia sentir, alterando o discernimento.

Trigésimo nono quilómetro

Um amigo meu que assistia à prova, vendo-me em dificuldades, correu alguns metros ao meu lado, quando o meu companheiro ficou na dúvida e perguntou se virávamos logo ou ainda tínhamos de ir ao fundo. O meu amigo é que esclareceu - "São 300 mts, vira-se à direita e está quase lá!". Eu sabia que não era bem assim mas nem uma palavra pronunciei!

Quadragésimo quilómetro

2h49m21s...ainda dava para chegar antes das míticas 3 horas, mas não podia vacilar. O meu companheiro de tantos quilómetros quebrou e foi ficando para trás. Eu depressa me esqueci dele...que injustiça! No limite do esforço, a lei da sobrevivência é que dita as regras. Surgiu uma ligeira subida que não é muito acentuada, mas no momento pareceu-me o Everest. Inclinei o corpo para a frente e apelei a todas as forças que me restavam para ultrapassar o capricho do percurso sem quebrar.

Quadragésimo primeiro quilómetro

2h53m52s...oiço palmas e incentivos, galvanizo-me! O meu pensamento vê o relógio electrónico outrora parado, mas agora certamente não cessa de contar e eu não vou permitir que o primeiro dígito seja 3!!! Cerro os dentes e voo para a meta. Agora sim, estou na recta final e os números amarelos do relógio sempre a mudar, contudo sem a velocidade necessária para roubar a felicidade que me invadiu ao terminar!

Final

2h58m59s!!! Não foi um excelente tempo, porque já fiz melhor, mas não deixou de ser muito bom. Uma simpática menina colocou-me a medalha em volta do pescoço, respiro um pouco e enquanto saboreio este momento de felicidade, surge ao pé de mim o meu companheiro de tantos quilómetros. O sorriso dele confirmava que também tinha conseguido vencer as 3 horas, com uns escassos 46 segundos de folga. Trocámos algumas palavras alegres e cumprimentamo-nos efusivamente!

A maratona é uma prova verdadeiramente fascinante. Carregada de esforço e sofrimento, glória e desilusão. Que estranho mundo da corrida que uma ínfima fracção de tempo pode separar a euforia da frustração nos atletas do pelotão!

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