quarta-feira, 18 de abril de 2007

Maratona de Roterdão: Quilómetros de calor e desilusão.

Tradução: Maratona acaba em campo de batalha.

No dia anterior à maratona, a organização, através da comunicação social, alertou os atletas para ajustarem as suas expectativas, relativamente aos tempos a que cada um se propunha fazer, porque era esperado um dia muito quente, anormal para a época. Ouvi estas notícias, mas achei que se estivessem no máximo 24 graus, que era o previsto, iriam certamente dificultar a minha tarefa, mas não a tornariam impossível. Também pensei que eu estaria mais habituado a um clima destes e que o alerta era um mero exagero dos holandeses. Sentia-me bem, tinha-me preparado ao longo de muitas semanas e não iria ser a meteorologia o motivo para alterar os meus planos. Além do mais, pior que não cumprir os objectivos, é não ter objectivos. Era com este espírito que me ia apresentar na partida para tentar bater o meu record pessoal da maratona.

No domingo acordei cedo, com sol lindo e uma temperatura muito agradável. Cheguei a Roterdão pelas 9h30m, equipei-me e às 10h00m horas já estava nas proximidades da partida pronto para fazer um ligeiro aquecimento, sentir a envolvência e o ambiente da maratona dos cerca de doze mil participantes esperados. Não precisei da tradicional t-shirt por cima da camisola de corrida o que não era bom sinal. Assim, depois de uns exercícios leves e de um "trote" suave dirigi-me para a zona da partida. Como ainda tinha de aguardar trinta minutos pela largada, fui observando os atletas. Alguns pareciam que iam para uma prova no deserto, ostentando em volta da cintura pequenas garrafas com líquido e pacotinhos de suplementos em gel. Mas a larga maioria, comigo incluído, estava ali sem nada, apenas sentados à espera do tiro da partida, olhando aqui e ali para o céu, a vislumbrar o sol e o calor que começavam a aumentar.

Começa a maratona e como é hábito em todas as corridas, o meu andamento é um pouco rápido para ganhar alguns lugares e poder correr mais à vontade sem ser atropelado. Os passeios que delimitavam as ruas estavam apinhados de um público eufórico e entusiasta, fotografando e incentivando ruidosamente todos os atletas que passavam. Com esta agitação toda, não consegui ver a placa do primeiro e do segundo quilómetro, para analisar o andamento, apenas vi a do terceiro e verifiquei que estava dentro do tempo previsto. Assim fui correndo dentro do ritmo estipulado. Aos quinze quilómetros, tinha uma hora de corrida e aqui comecei a sentir o calor, o meu corpo foi-me dando sinais que seria muito difícil manter aquele ritmo até aos trinta quilómetros. Abrandei um pouco, aliás queria que esse abrandamento fosse ligeiro, mas acabou por ser em demasia e aos vinte quilómetros as aspirações de bater o meu record começavam a ficar hipotecadas.

Passei o relógio da meia-maratona com 1h26m10s, o calor apertava, o ar era abafado, a respiração mais dificil. Fazer outros tantos quilómetros, naquelas condições, naquele ritmo não iria ser possível. Aqui sim, tentei ajustar os meus objectivos - concluir a prova entre as 2h59m30s e as 2h59m59s. Numa tentativa de tornar isto possível, esforcei-me para não quebrar e manter um andamento certo, mas por volta dos vinte e sete quilómetros com quase duas horas de corrida e um calor cada vez mais sufocante, senti que até isto não seria alcançável.Não sou suicida, mas também não sou pessoa de desistir, olhei para os espectadores que estavam na rua a incentivar e naquele momento decidi que iria continuar a prova, apesar de ver muitos atletas a pararem e depois a desistirem. Este fantástico público que nunca regateara apoio aos atletas, que sentindo as dificuldadas geradas pelo calor, juntou à palmas e às palavras, abastecimentos extra, com água em mangueiras ligadas desde as casas, pedaços de banana e laranja cortados nas mãos estendidas para os atletas, mereciam que fizesse um derradeiro esforço.

Cortei a meta com 3h09m28s. Enfiaram-me a medalha no pescoço, mas quase nem dei por isso. O ambiente era desolador, não vi um único rosto feliz, vi gente cansada, triste, cabisbaixa, sentada, a beber um golo de água ou a a mastigar um pedaço de laranja e a abanar a cabeça. Parecia que uma guerra tinha terminado e todos tínhamos perdido, tal era o cenário de desilusão. Obviamente, eu também me sentia assim. Mas sei o que todos pensavam, sei o que lhes ia na alma. Aqueles olhares de mágoa e raiva estavam já a projectar correr uma outra maratona dentro de alguns meses. Estranha tribo esta!

As tulipas dão-se mal com o calor. Ficam caídas e meladas. Ofereceram-me rosas. Triste sina a minha. Queria o perfume das tulipas, tive os espinhos das rosas.



Mais tarde vim a saber:

- Quando a prova começou estavam 19 graus, mas passado uma hora subiu aos 26, depois aos 28 e em grande parte do percurso atingiu os 30 graus. Um record histórico para a Holanda no mês de Abril.

- 111 atletas tiveram de ir ao hospital receber soro devido a desidratação extrema.

- Desistiram aproximadamente 2.500 atletas e a organização cancelou a prova às 14h45m, forçando a desistência de cerca de 3.000 atletas.

- Oficialmente terminaram a prova 4.339 atletas, eu fiquei em 244º lugar.






7 comentários:

Maria Sem Frio Nem Casa disse...

Zé!

És um verdadeiro Sobrevivente! Parabéns!

Experiência alucinadora esta! Para as circusntâncias, estiveste muito bem! Parabéns pela tua sensatez! E coragem, e força de vontade, mas principalmente sensatez!

E está a organização de parabéns pelo bom senso que teve ao não permitir que seres humanos se arrastassem naquele suplício por 4 e muito mais horas...

Foi pena... para todos, mas é das tais coisas: que ninguém controla.

Deixa lá... no Porto será bem melhor par ti!

Uma boa recuperação agora!

E... Viva a Maratona!

Ana Pereira

Unknown disse...



Os meus parabéns. A sua verdadeira vitória foi chegar ao fim, só foi mais uma maratona em muitas que viram. Um abraço.

Jacke Gense disse...

José!
É muito ruim quando não conseguimos atingir nossas metas... Mas sempre surgirão novas oportunidades para que elas sejam alcançadas....

O importante é que você foi até o fim... você foi um guerreiro, pois uma maratona não é para qualquer um... somente os especiais conseguem!

E você é uma pessoa super especial...

PARABÉNS... Puderá eu ter essa sua performance!

Bjs

Pedro Regueiras disse...

Continuas a ser um exemplo para mim e para todos os que te quer bem, tenho uma certeza não foi por falta de vontade tua que não conseguistes (mas estavas lá), o que interessa nisto tudo é que em Outubro tu e 5 ou 6 amigos vais estar na maratona do porto para tentar cumprir os nossos objectivos e vamos é ver se o resto do grupo “colegas de parque” vão lá estar.

Um Grande Abraço
Pedro Nat

Anónimo disse...

Bravo José Capela.
Parabéns por este excelente relato de uma participação na Maratona de Roterdão, disputada em condições verdadeiramente invulgares. Foi preciso muita "cabecinha" para travar a tempo um andamento possível, mas noujtras condições.
Curiosamente, o relato do Rodrigo Silva em 2006 (Blog Fugindo ao cão), desta mesma prova, falava de frio e chuva. Vá-se lá perceber estas coisas do tempo.
E 3,09 é um ganda tempo !
Parabéns amigo Capela.

Anónimo disse...

Bom dia José

Como é triste o seu relato. As palavras ganham vida e transportam-nos para um quadro emocionante de verdadeira desolação, tal é a angústia que transmitem.

Na minha opinião, e dadas as condições, o josé teve uma excelente prestação. O mesmo mérito é devido á organização que tomou a atitude sensata (acho eu) de cancelarem o final da prova quando as condições se tornaram insustentáveis.
José, as rosas têm espinhos, mas continuam a ser belas...outras Maratonas virão...

Parabéns.

Ana Paula Pinto

Anónimo disse...

Eu que estive lá a ver devo dizer que meu irmão bateu o record da perseverança e da luta mas acima de tudo do bom senso em travar a marcha...

Ele é dos bons!

Abraço,

Manuela